"A ARTE DE BRINCAR
É lamentável, mas os tempos andam tão maus que as próprias crianças já não sabem mais brincar.
Em dias tranqüilos, elas gostavam de suas cantigas de roda, tinham um largo repertório, e à tardinha e à noite brincavam pelos quintais e pelas ruas, pelos jardins e pelas praças. Tinham também jogos cantados e falados, resíduos ou esboços de teatro, e com eles se entretinham, alegremente. Os brinquedos simples, primitivos e eternos, fáceis de obter e de conservar, não faltavam nem mesmo às mais pobres; e quase se podia saber em que mês se estava pelo aparecimento dos papagaios de papel ou das bolas de gude, do pião ou do bilboquê. As bonecas ingênuas ocupavam as meninas com preparativos de enxovais de batizado e casamento, conduzindo assim as pequeninas mãos à técnica da costura e do bordado por um caminho de resultados surpreendentes, graças à sua origem terna e sentimental.
Esses jogos, quase todos de grupo, estabeleciam relações sociais de cordialidade, entre as crianças. Muitas amizades nasceram de partidas de gude ou “cinco marias”, de cirandas e de fogos de artifício. E essa sociabilidade era autêntica, e de longa permanência, pois resistira às competições dos jogos, às rivalidades aos despeitos, aprimorara o caráter nesses encontros de infância, que é quando se deve aprender a tolerância, a admiração, a justiça e outras coisas mais.
As crianças de hoje parecem-me irritadas e desnorteadas. Cerca-as uma atmosfera bravia, uma agitada atmosfera, que as deixa sem a suficiente serenidade para apreciar a beleza simples das pequenas coisas e admitir outras vidas, além da sua, neste mundo tão grande.
Os jogos de conjunto tendem a desaparecer, e são os brinquedos mecânicos que os subtituem. Mas uma das coisas interessantes naqueles jogos era a sua barateza. Não há rua tão infeliz que não tenha pelo menos uma dúzia de crianças. Exceto aos pais, essas crianças não custam nada. É só reuni-las, fazê-las entoar umas tantas cantigas, e já temos uma festa, meio desafinada, meio rouca – mas há alguma festa que não seja meio rouca e meio desafinada? Nunca vi.
Agora as bicicletas e os patins e os automóveis destes tempos de velocidade, a história é outra. Nem todos os pais podem adquirir coisas tão caras para a sua prole. E, como os possuidores de tão custosas prendas, graças exatamente à sua qualidade de brinquedos velozes, podem estar quase ao mesmo tempo em muitas partes, resulta que uma boa porção da criançada sofre – sofre profundamente – por ver essas belas máquinas fora do alcance das suas possibilidades.
Não me quero deter na análise dos sentimentos que essa situação desperta na alma infantil. “Há muitas coisas neste mundo, Horácio”, que as crianças não podem entender...
Ainda uma coisa me parece pior: que os pais também sofram com essa situação. Esse sofrimento não resolve nada. E se um sofrimento não resolve nada, é inútil e deve ser eliminado. Deve ser substituído por uma coisa que resolva. A coisa que resolve é uma compreensão diferente da vida, e uma interpretação mais pura, mais sadia, mais isenta. E eu sei que dá um certo trabalho ter-se uma tal concepção do mundo que tudo deixe em seus lugares sem perturbar a paz de espírito de cada um. Mas, quando não se tem essa concepção, também não se tem essa paz, e, assim, é mister começar pelo único lado que é, verdadeiramente, começo.
Se os pais se lamentarem de não dar a seus filhos todas essas máquinas atraentes, mas um pouco tediosas que se inventam para brinquedo, podem causar um grande mal às crianças, aumentando o interesse naturalmente suscitado por essas coisas. Mas se não lhes derem grande atenção, se estiverem, eles mesmos, enamorados da infância e da beleza do mundo, conseguirão inspirar em seus filhos a sedução profunda de coisas que não custam nada, ou custam muito pouco, e encerram uma poesia delicada e imortal.
Outro dia eu estava muito quieta contemplando esta cena: um pequeno pássaro da serra mirou e remirou o menino veranista que possuía uma dessas bicicletas fabulosas com que, nos circos, se fazem bailados de prata; por fim, propôs-lhe um negócio que, à sua experiência de pequeno comerciante, lhe parecia de alta vantagem: ele dava uma voltinha de bicicleta e o veranista, duas voltinhas no seu cavalo.
Mas o veranista, como é da sua condição, dava uma grande importância a si mesmo e à sua propriedade. De modo que o negócio não se fez.
Está claro que a minha conclusão é desfavorável ao veranista; pois que o menino rude da montanha ache surpreendente aquela máquina cintilante e queira ver como funciona é natural; mas que o veranista, pessoa já alfabetizada, geralmente com casa própria e professor de inglês, não saiba apreciar a vantagem de uma voltinha a cavalo – cavalo, bicho que vive, relincha, sacode a crina, e pisa com um garbo de jovem de dezoito anos na Cinelância – ah, isso é inconcebível.
E é por isso que eu digo que a arte de brincar se vai perdendo. A máquina está gastando a infância. Qualquer dia as criaturas humanas nascerão de barbas brancas, como Lao-Tsé.
Oxalá se vierem com a sua sabedoria...”
(Cecília Meirelles)